Com sangue
- Maria Luísa Macedo
- Apr 19, 2015
- 5 min read

Aos onze anos tive minha menarca. Eu me lembro muito bem quando fui ao banheiro, vi uma mancha marrom escura na minha calcinha e saí pela casa procurando minha mãe, sem ter a menor idéia do que poderia ter acontecido – mesmo tendo passado a véspera sentindo cólicas horríveis! Depois desse dia um novo mundo surgiu diante meus olhos. Infelizmente, nesse novo mundo aprendi que a palavra menstruação, tanto como a menstruação em si, era algo sujo, incomodo... Aprendi que eu sofreria mensalmente de uma maldição que me traria dores, limitações e cheiros estranhos. E, por fim, aprendi que existe uma infinidade de tipos de remédios, absorventes e sabonetes que promete me aliviar de tais problemas e a qual eu tenho livre acesso. As opressões com as quais fui soterrada devido ao meu novo status me ensinaram a ter vergonha do meu ciclo, dos meus humores, do meu corpo e do meu ritmo.
A pensadora, Gloria Steinem, explora o sexismo envolvido na demonização da menstruação em seu artigo Se Os Homens Menstruassem. Steinem afirma que, caso os papéis fossem invertidos, os homens tornariam o ciclo menstrual um evento másculo, invejável e fruto de competição. De fato, assuntos acerca da menstruação e dos ciclos femininos sempre foram motivo de inquietação por parte das sociedades patriarcais – mitos e crenças populares que visam invalidar o discurso feminino encontram suas raízes em tais sociedades. Elaine Showalter ilustra tal afirmação em seu livro The Female Malady. A autora relata que na Inglaterra vitoriana, por exemplo, o discurso médico vigente passou a usar o ciclo menstrual da mulher como justificativa para a maior parte das questões relacionadas à sua saúde mental, observando maior incidência de doenças mentais em fases como a menarca, puerpério e menopausa. À tal afirmação podemos atribur o uso de expressões como “Tá naqueles dias?” ou “Mulher grávida é louca.”
Fatores sócio-culturais ligados aos períodos da vida das mulheres nunca pareceram ter muita importância na construção social e entendimento do gênero feminino. Ainda abordando a representação feminina na era vitoriana, podemos observar que durante a infância a menina vivia em um estado liberal e quase andrógino – condição essa que era abruptamente rompida com a chegada da primeira menstruação, quando a mulher passava a ser reduzida ao opressor âmbito doméstico. Na organização social atual também não faltam exemplos. O que falar da dupla jornada de trabalho feminina? Ou da discriminação no ambiente de trabalho? Ou ainda da visão do corpo feminino como algo público? Todas essas atitudes nos levam a indagar se as mulheres são loucas por causa dos seus ciclos ou se ficam loucas após anos de opressão sobre suas vidas? A herança que o pensamento vitoriano nos deixou acerca do feminino afirma que nossos corpos são errados – partes do corpo feminino e suas reações fisiológicas naturais são motivo de embaraço e devem ser mantidas em segredo. É tal herança que ensina as meninas a transformarem um período de sensações férteis, tanto em termos emocionais como sexuais, em um período de vergonha e punição. A opressão do componente e do corpo feminino forma mulheres sem voz, inimigas de seus corpos e seu gênero.
Autora de Mulheres que Correm com os Lobos, a bíblia do arquétipo feminino, Clarissa Pinkola Estés, relata que, em termos culturais, podemos dar muitos exemplos de como o arquétipo do predador molda idéias e sentimentos a fim de roubar a luz da mulher. Tal afirmação pode ser ilustrada através da visão crítica acerca da perda da percepção natural nas gerações de mulheres cujas mães interromperam a tradição de ensinar e preparar suas filhas para acolhê-las no aspecto mais básico e fisiológico do ser mulher, a menstruação. Pinkola Estés aponta ainda que as mulheres nos tempos antigos, assim como as mulheres aborígenes modernas, reservavam um local sagrado para suas indagações e comunhão durante o período menstrual. A autora afirma que tal tradição deve-se ao fato de que, durante a menstruação, a mulher está muito mais próxima do autoconhecimento do que o normal. “A membrana que separa a mente consciente da inconsciente fica, então, consideravelmente mais fina. Sentimentos, recordações e sensações que normalmente são impedidos de atingir a consciência chegam ao conhecimento sem nenhuma resistência.”
Ainda de acordo com a visão de Pinkola Estés, a transmissão da henna e de outros pigmentos vermelhos às mocinhas nas antigas culturas matriarcais da Índia, do Egito e de partes da Ásia e da Turquia celebra a travessia da infância para a profunda capacidade de gerar vida no próprio ventre, de dispor do poder sexual resultante e de todos os poderes femininos periféricos. Tais ritos de passagem apresentavam o sangue em todos os seus estágios - o sangue uterino da menstruação, o do parto, o do aborto... Outro exemplo da glorificação do sangue menstrual deriva do antigo Egito, onde o sangue era considerado sagrado. Assim, antes de serem mumificados, muitos faraós eram pintados com sangue menstrual, de forma a garantir seu renascimento - já que tal sangue representava a vida e o poder de criação.
Claudia Morelli Gadotti, em seu artigo Loucura ou Criatividade?, explora a condição arquetípica do feminino e seus desdobramentos na organização social. A autora aponta que “estar na Vida é incluir também o sangue menstrual como um fluido de Vida e não apenas de morte, aceitando seu aspecto gerador e criativo, escancarando nossa natureza carnal, fisiológica e instintiva.” Morelli Gadotti afirma ainda que “na sua experiência corporal, a mulher vive constantemente a fantasia da morte. A morte nossa de cada dia, ou melhor, de cada mês, enterrando mensalmente a possibilidade de uma nova vida.” Portanto, a dinâmica feminina na mulher aceita e compreende o movimento cíclico da vida.
Porém, ainda com a existência da herança maldita com a qual as mulheres foram presenteadas, atualmente, podemos acompanhar o surgimento de diversas organizações e indivíduos que procuram lutar contra a prática da demonização da menstruação. O grupo performático espanhol Sangre Menstrual, circula pelas ruas com calças e shorts manchados de sangue a fim de chamar atenção para seu manifesto - que afirma que escondendo nossa menstruação estamos nos tornando parte ativa do sistema patriarcal e nos punindo por sermos mulheres. As mulheres da The Red Web Foundation estão trabalhando para promover uma visão mais positiva, sensível e saudável do ciclo menstrual através de diversos programas. A marca de lingerie Dear Kate, lançou uma campanha publicitária que reúne mulheres contando histórias relacionadas à suas menarcas. Por fim, como não citar a usuária do Instagram, Rupi Kaur, que postou fotos de um ensaio feito com sua irmã buscando empoderamento e teve suas imagens deletadas da rede?
Pessoalmente, é extremamente gratificante ver o tabu acerca do corpo feminino ser questionado – afinal, o questionamento é o primeiro passo para a mudança. Uma visão mais positiva, inclusiva e, por que não, orgulhosa dos processos corporais femininos gera o empoderamento das mulheres e das características femininas. Mulheres, já passou da hora de retomarmos nosso poder!
Maria Luísa Macedo
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