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Elza Soares é a mulher do fim do mundo

  • Caio Chaim
  • Nov 3, 2017
  • 4 min read

Elza Soares é um monumento. Uma mulher de múltiplas facetas: fortaleza, fênix, guerreira visceral, uma sobrevivente. É o retrato minucioso do que o brasileiro é como povo – bebeu de suas virtudes, na fonte do samba e da alegria inerente, e sofreu com suas mazelas, como a pobreza, o machismo e o racismo. Elza é a Mulher do Fim do Mundo – viveu de tudo e continua disposta a viver além.


Elzinha, apelido carinhoso da cantora, nasceu na favela de Moça Bonita, no Rio de Janeiro, em 1937. Filha de família extremamente humilde, foi obrigada pelo pai a se casar com 12 anos. Aos 13, se tornou mãe pela primeira vez. Aos 21, já era viúva e mãe de cinco filhos, um deles falecido, vítima da fome.

O sonho de Elza, mesmo com a vida difícil imposta desde o nascimento, sempre foi cantar. Descobriu sua vocação à medida em que carregava latas d’água morro abaixo - descobriu sua rouquidão característica por causa do peso que as latas lhe imprimiam na garganta.


O surgimento de Elza para o mundo artístico resume bem sua origem e seu destino. Elzinha participou do programa de calouros de Ary Barroso, da Rádio Tupi, em 1953. Vestida com a roupa remendada de sua mãe e com seus 50 quilos, a cantora foi humilhada pelo público e pelo apresentador assim que subiu ao palco. Em tom de gozação, Ary perguntou de que planeta vinha a candidata, ao que Elza prontamente respondeu: “Do mesmo que o seu. O Planeta Fome”. Após cantar Lama despretensiosamente, com seu vocal rasgado de distorções únicas, Ary abraçou Elza e a declarou vencedora do concurso, gritando: “Senhoras e Senhores, nasce aqui uma estrela!”


A artista carioca permaneceu em intensa atividade entre os anos 60 e 70, principalmente. Foi vítima de racismo em sua trajetória em diversas ocasiões, ao ser negada por gravadoras pelo simples fato de ser negra. Não bastasse tudo isso, Elza sofreu profundamente com o machismo e o patriarcalismo da sociedade brasileira, em razão de seu casamento com o jogador de futebol Garrincha, de 1968 e 1982.


A cantora foi perseguida ao ser acusada de ser o motivo do fim do matrimônio anterior do jogador e de sua decadência, apesar de seu histórico de alcoolismo, chegando a ser ameaçada de morte e linchamento. Garrincha, tido como herói nacional, agredia Elza com frequência. A cantora percorria os bares do Rio de Janeiro pedindo que ninguém vendesse bebidas alcoólicas ao marido, na tentativa de auxiliá-lo na luta contra o vício. Mesmo diante de tanto sofrimento, a artista nunca perdeu a alegria e a irreverência no palco, uma das suas características mais marcantes.


Elza se afastou da música em diversos períodos, entre os anos 80 e 90. Se mudou para o exterior após a morte de Garrincha, em 1983, vítima de cirrose hepática, e de seu filho Garrinchinha, em acidente de carro em 1986. Permaneceu com a voz silenciada nesses anos de luto, salvo uma ou outra ocasião.


Os anos 2000 representaram o renascimento dessa mulher que pode ser comparada à fênix, sempre se reerguendo mais fortalecida diante de cada revés da vida. Sua fama internacional, fruto de suas interpretações viscerais e de seu timbre vocal único, lhe rendeu o título de “Melhor Cantora do Milênio” concedido pela BBC de Londres, em 2000. Em 2002, lançou o fantástico “Do Cóccix até o Pescoço”, aclamado pela crítica e vencedor do Grammy Latino de 2003 como Melhor Álbum de Música Popular Brasileira. O disco, um dos melhores daquela década, já demonstrava a capacidade da cantora de se reinventar, buscando novas sonoridades, ritmos e timbres – do funk ao hip-hop, do eletrônico ao samba rock e ao jazz.


Elza ainda lançou outros 2 álbuns nos anos 2000: Vivo Feliz (2003) e Beba-me – Ao Vivo (2007). No entanto, foi em 2015 que a cantora, após mais de 60 anos de carreira, chegou ao seu verdadeiro ápice – e acredite se quiser, apenas agora começamos a falar sobre o tema central dessa matéria: o álbum A Mulher do Fim do Mundo (2015), primeiro disco de sua extensa carreira só com músicas inéditas. O álbum é digno do posto de um dos melhores discos da história da música brasileira e foi multipremiado, nacional e internacionalmente.


Elza Soares sedimenta de uma vez por todas sua história, sua obra e seu espírito artístico. Canta sua própria vida, sua luta e seu sofrimento, sua alegria e sua coragem, a perseverança infinita de seu coração. Grita a plenos pulmões, rasgando sua rouquidão como nunca antes, falando sobre temas como morte, sexo, negritude, minorias, empoderamento feminino. Define a si mesma pelo nome do álbum: "Eu acho que a mulher do fim do mundo é aquela que busca, é aquela que grita, que reivindica, que sempre fica de pé. No fim, eu sou essa mulher".


A própria cantora considera o trabalho o melhor de sua extensa carreira. Indagada sobre as razões para isso, Elza foi categórica em entrevista à Cultura-Ípsilon, em 2015: “nesse disco eu falo tudo o que quero, falo tudo o que sinto. (...) Tinha muita coisa cá dentro que queria colocar fora. A mulher que apanha do marido e que tem que denunciar, a vida difícil do negro com esse racismo hipócrita, o homossexual que sofre demais. Nesse disco tem tudo isso”.


Em entrevista concedida em 2011, a artista já adiantava o que viria 4 anos mais tarde: “se criarem um novo modelo de música, eu quero, porque tudo que está aí eu já fiz. Fiz tudo, não sei o que falta fazer. Ou talvez falte fazer tudo ainda, quem sabe”. Em A Mulher do Fim do Mundo, Elza dá mais um passo em direção ao inédito, do alto de seus quase 80 anos. Acompanhada pelos instrumentistas do Bixiga 70 e do produtor Guilherme Kastrup, Elza faz um “samba-sujo”. Não tem vergonha de usar timbres sintetizados junto de cavacos, de unir beats eletrônicos e guitarras distorcidas a pandeiros e surdos.

A diva da Bossa Negra nos brinda mais uma vez com sua habilidade camaleônica infinita. E deixa, como sempre, lições de vida necessárias a um mundo mais corajoso e alegre: “Eu tenho essa mania de me reinventar. Se você não buscar o melhor para você, você não consegue nada. Eu continuo buscando, reivindicando, sambando, desejando, sempre”.


A sabedoria de Elza Soares é fruto de campos inférteis. Daqueles que só com aragem persistente se consegue germinar algo, à custo de muitas latas d’águas. Elza Soares continua a florescer e a prosseguir. E continuará cantando até o fim.



Caio Chaim, vocalista da banda O Tarot

 
 
 

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