Vivi um relacionamento abusivo e só percebi agora
- Luisa Dale
- Jul 24, 2017
- 9 min read
Se você acha que falar sobre relacionamentos abusivos “é modinha” eu sugiro que feche a aba desde já. Ou não, talvez você consiga deixar um pouco de lado a sua arrogância e costumeira falta de empatia e dar uma chance para um assunto que pode não te afetar, mas seguramente afeta a vida de alguém próximo a você.
Você não me conhece, então vou me apresentar: Luísa, 27 anos, feminista, fotógrafa, casada (com um homem), branca, de classe média alta. Sim, muitos privilégios. Mas ser mulher ainda não é um deles. E o fato de ser mulher numa sociedade machista e patriarcal como a brasileira — como boa parte do resto do mundo — transforma totalmente a forma como nos relacionamos com homens. Não estou dizendo que não existe relacionamento abusivo entre mulheres, mas acredito que até estes estejam diretamente ligados a uma das partes frequentemente assumir um papel “de homem”, onde ser homem na sociedade significa vestir muitas máscaras e cascas para cumprir um papel de poder e dominação que acaba sendo muitas vezes mortal. Mortal não só para as mulheres e toda a pessoa não cis e não heterossexual mas como para os próprios homens cis e heterossexuais.

Bom, vou falar de mim agora. Bem intimamente, como nunca o fiz tão abertamente antes em redes sociais. Antes de conhecer meu atual marido eu namorei outro cara por 5 anos. Se eu te contar por cima, você vai ficar maravilhada com todo o “romance” que foi o contexto no qual iniciamos nossa relação. Nos conhecemos em Paris, vivemos uma paixão intensa de verão. Ele morava lá, eu no Brasil. Mantivemos um contato virtual, mas da minha parte mais como um flerte do que algo realmente sério. Eu tinha 18 anos, tinha acabado de entrar na universidade pública e tirar carteira de motorista — I was living the life, dude. Até namorei um outro carinha no meio tempo e aquele outro ficou bem chateado, me enviou cartas, se declarou, e então eu senti que ele realmente gostava de mim e me levava a sério. Confesso que fiquei um pouco assustada, eu já havia namorado antes mas um relacionamento à distância assim, com um oceano separando a gente, era demais pra minha cabeça à época. No entanto, eu havia me apaixonado por ele em Paris e sentia um carinho grande por ele.
Um belo dia, um ano depois do nosso primeiro encontro, ele me falou que estava no Brasil e que viria à minha cidade para me ver. Eu gelei. Fiquei sem reação, porque de repente toda aquela paixão que eu havia sentido poderia se esvair, e eu não queria isso, queria manter aquele sentimento de “foi maravilhoso enquanto durou”. E então quando ele apareceu eu percebi que sentia mesmo algo mais forte por ele e resolvi dar uma chance pra esse negócio de distância (agora ele estava morando no Brasil, mas em outra cidade).
Não vou ficar aqui contando cada detalhe do relacionamento, cada briga, cada situação que me fez questionar minha sanidade mental, senão esse texto vai virar uma tese de doutorado. E eu não estou aqui pintando uma imagem maniqueísta de nós dois como indivíduos, sendo ele o mau e eu a boa. Mas no nosso relacionamento sim, ele foi o abusivo. A mãe dele uma vez me falou uma coisa que nunca esqueci: “Luísa, o relacionamento de vocês é tóxico”. Me doeu muito ouvir isso, mas hoje, 3 anos após nosso término, eu entendo o que ela quis dizer e ela tinha total razão.
No início, ele se mostrava o cara mais romântico, perdidamente apaixonado que eu já tinha visto e ouvido falar. Eu realmente me sentia muito importante pra ele, e esse sentimento era obviamente bom, apesar de que eu ainda não sabia direito o que eu sentia por ele. Passaram-se os primeiros meses e eu me vi apaixonada, extremamente apaixonada. E apesar de ser novinha e “vida loka” eu sempre levei meus compromissos a sério, sejam eles quais fossem. Não deixei de sair com minhas amigas, não deixei de sair pra dançar ou para algum churrasco da faculdade, e sempre me permaneci fiel ao meu compromisso com ele. Já ele não. E isso eu fui descobrir 1 ano depois do início do namoro. Ele já havia me traído no início do namoro (sim, mesmo durante aquela novela de mulher da vida, etc.) e depois namorou comigo e com outra ao mesmo tempo, durante um semestre — que eu saiba. Sem contar tudo o que eu não sei e que, àquela altura do campeonato, deveria ter muito mais coisa do que eu tinha conhecimento.
Vou te dizer que quando vi fotos dele com a outra moça passando o réveillon em uma praia — enquanto que para mim, ele estava acampando com amigos — meu mundo desabou. Posso dizer que esse foi o começo do fim da minha auto-estima. Ver aquilo com meus próprios olhos doeu tanto que eu não podia acreditar que era a mesma pessoa que me fazia as mais belas juras de amor. Eu simplesmente não aceitei. E foi aí que eu errei. Eu transformei a minha vida e o relacionamento num verdadeiro inferno até o fim. Descobri mais tarde, depois de anos odiando uma outra mulher que nunca tinha visto na vida, numa longa conversa com ela, que para ela, eu era a ex-namorada maluca que não conseguia superar um suposto término. Quando o confrontei após essa conversa, adivinhe o que ele fez? Isso mesmo, brigou comigo, cortou contato temporariamente e “quis” terminar mais uma vez.
Um lado meu que eu não conhecia veio à tona: ciumenta e possessiva. E quanto mais eu demonstrava traços dessas características, mais ele se “afastava”, mais ele me desprezava, mais ele era cruel comigo. Não, ninguém gosta de pessoas ciumentas e possessivas. Eu odiava ser assim. E ele me odiava por ser assim, mas nunca colocou um fim definitivo na relação. Por que não, se era ele quem dizia que estava tão de saco cheio? Então, se você já passou por isso, já deve saber como é horrível aquele aperto constante no peito de não saber nunca se a pessoa está sendo verdadeira com você, de não saber como agir, de querer consertar as coisas, conversar sobre seus sentimentos e a pessoa desprezar qualquer atitude sua nesse direcionamento. Eu me sentia cada vez mais impotente, cada vez mais dependente emocionalmente daquele “amor” louco e vivia questionando meus próprios valores, me colocando sempre em uma posição de insanidade. Porque quando tudo estava bem, era maravilhoso. Eu conseguia por algum tempo fingir que dentro de mim estava tudo ok, que era tudo loucura da minha cabeça e que tudo ia ficar bem. Isso para ele era maravilhoso e a gente tinha ótimos dias de muito sexo e fazendo tranquilamente muitas coisas que ele queria fazer. Curioso era isso, só estávamos bem quando estávamos fazendo algo que ele queria. Caso contrário era cara feia, era sono, era cansaço, era antipatia com meus — poucos — amigos. Àquela altura, a maioria dos meus amigos eram os amigos dele. Eu estava sozinha em uma cidade que não era minha e tudo o que eu tinha era esse pequeno círculo de afeto.

Sempre que eu tinha alguma das minhas já costumeiras crises de ansiedade, ele me rechaçava. Não houve uma única vez em que fui acolhida. Ele já dizia “lá vem você com DR de novo”, “eu não aguento mais isso”, e o mortal “me deixe em paz”. Aí ele desligava o telefone e cortava qualquer contato comigo pelo tempo que o conviesse. Se eu o procurasse pessoalmente, era mais desrespeito, gritaria e porta batendo na minha cara. E eu fui me anulando, me apagando, me odiando, perdendo qualquer resquício de espontaneidade antes tão característico meu.
Certa vez, fui visitar meus pais na minha cidade natal e saí para almoçar com uma amiga e ela me disse: “Lu, eu te conheço há muitos anos já, e eu preciso te dizer isso, você perdeu seu brilho depois que entrou nesse relacionamento”. Eu não me chateei com ela por ter feito esse comentário, doeu, mas como eu sempre fazia, neguei. Joguei aquela opinião de alguém que era próxima e gostava de mim, para baixo do tapete, mais uma vez.
O relacionamento abusivo não é só aquele onde existe violência física ou explicitamente verbal. O relacionamento abusivo é onde uma pessoa extremamente insegura vê no outro a possibilidade de exercer seu poder e se sentir superior de alguma forma. O relacionamento abusivo acontece quando duas inseguranças se encontram, talvez não ao mesmo tempo, como foi no meu caso, mas eventualmente serão despertadas. É abuso psicológico você perceber uma pessoa sofrendo e fraca (porque já nem eram só momentos de fragilidade, eu estava fraca) e fazer questão de perpetuar aquilo com sua crueldade, através da indiferença ou de atos vingativos e desonestos comigo e com ele mesmo.
Meu intuito ao escrever esse texto é, ao mostrar a minha história, ajudar outras mulheres que estejam em situações semelhantes mas que têm medo de sair do relacionamento ou não querem aceitar que estão nessa dinâmica. Porque acredite, no fundo você sabe que algo não está certo. Eu sempre senti. Nunca aceitei porque gostava demais dele e gostava de menos de mim. Foram 3 anos até eu pensar em falar abertamente sobre essa fase da minha vida, até então confesso que nunca havia pensado na importância que meu relato poderia ter para outras mulheres. Hoje, quase 10 anos depois do início daquele relacionamento, eu consigo fazer uma análise mais ponderada do que isso tudo representou e representa pra mim.
Não temos mais contato. Quem terminou o relacionamento foi ele, no meio do corredor de um hospital, quando ele passava por uma fase extremamente difícil. Eu chorei por um dia e só. Parecia que minhas lágrimas por ele já não valiam nada, foram anos a fio de crises e tristezas e muita solidão. Eu estava cansada de sofrer. Desde o término eu decidi: só entro num relacionamento no dia em que eu estiver muito melhor comigo, me amando mais e me conhecendo mais, para não cair em armadilhas do meu próprio ego e nem de inseguranças alheias. Claro, eu sou ser humano e estarei SEMPRE suscetível ao outro, mas progressivamente em uma escala muito menor. Quando decidi me amar de verdade parece que deu um estalo na minha cabeça e no meu coração e eu vivi muito melhor, foi libertador.
Eis que quase um ano depois do término nos reencontramos. Eu já estava de volta à minha cidade natal e tinha ido à cidade dele a passeio com umas amigas em um feriado. Ele soube e me contatou. Eu pensava que estava muito mais forte e inabalável. Ledo engano. Quando o vi o coração bateu mais forte e um turbilhão de sentimentos bons e péssimos vieram à tona. Lavamos muita roupa suja — o que foi ótimo — e acabamos no famoso flashback. Até ensaiamos uma possível volta, mas à partir do momento em que eu percebi — ou finalmente aceitei, né? — que éramos pessoas muito diferentes e que a nossa combinação era de fato tóxica eu disse meu primeiro “não” a ele. E como era de se esperar, ele não levou numa boa, disse que eu havia morrido para ele e mais uma vez me excluiu de toda a sua vida. Não sei se ele esperava que eu corresse atrás, como sempre o fazia, mas se ele esperava, se frustrou. A minha auto-estima estava muito melhor e minha paz de espírito em primeiro plano, não tinha mais porquê insistir naquilo.
A vida é longa, mas passa rápido. A ideia de escrever esse texto veio quando, revisitando alguns arquivos de imagem antigos, me deparei com auto-retratos que fazia e me achei tão bonita. Talvez você ache estranho e que não tenha nada a ver com o assunto abordado aqui, mas me bateu um sentimento de arrependimento tão grande de na época dessas fotos eu não perceber o quanto eu era bonita, legal, inteligente, criativa. Eu não ter essa consciência no presente, entendem? Hoje olho pra trás e vejo essa Luísa. Se talvez eu tivesse me visto assim, talvez eu não tivesse me prendido tanto tempo a uma coisa que me fazia tão mal. Mas como diz o velho ditado, não adianta chorar o leite derramado. Bola pra frente. E obviamente eu só consigo enxergar isso hoje porque amadureci, porque criei esse sentimento de auto-amor mais forte dentro de mim que eu simplesmente não tinha, e que veio com o tempo e com a experiência. Ou seja, pelo menos algo de bom consegui extrair de tanto tempo sofrendo: era me amar ou me amar.
Tê-lo reencontrado foi um alívio para eu finalmente conseguir colocar dentro de mim um ponto final nessa história que tanto me atormentou. Hoje, presenciando tantos casos de abusos e com o movimento pela igualdade das mulheres em maravilhosa ascensão, eu senti uma necessidade de falar sobre isso, dessa vez para quem quiser ler. Quando terminamos um relacionamento, sobretudo quando este é abusivo, passamos por um verdadeiro luto. E chega então o dia em que sentimos que nossa história pode ajudar outra pessoa e que deve sim ser compartilhada. Vivemos em sociedade e somos mais parecidos do que imaginamos, ajudemo-nos, compartilhemos nossas vitórias mas também nossos fracassos, tristezas e anseios. Formemos uma rede de sororidade e fraternidade e enxerguemo-nos como iguais e passíveis dos mesmos erros e acertos.
E para os que nunca passaram por isso, que tal um olhar caridoso à sua volta? Às vezes é seu amigo ou seu irmão quem está sendo o abusador e você pode sim ajudá-lo, e sobretudo a pessoa que estiver com ele a sair de uma relação tóxica. Acredito que o diálogo aberto cara-a-cara é sempre a forma mais transparente e menos passível de má interpretação na comunicação entre duas pessoas. E sim, em briga de casal se mete a colher sim.
Hoje acolho minha história por carinho a mim mesma. Mas não precisamos todas passar por relacionamentos abusivos para nos amarmos. Sério, se você leu esse texto e sentiu que algo mexeu dentro de você, resolva isso, mulher. Encontre sua força e não deixe ninguém apagar sua luz. Busque ajuda, converse com outras pessoas que você ama e confia, abra-se, divida. Você é especial e o seu amor próprio é o que faz a humanidade ir pra frente.
Luisa Dale, fotógrafa
Fonte: https://medium.com/@luisadale/vivi-um-relacionamento-abusivo-e-s%C3%B3-percebi-agora-2f0d044833b9
Comments