Considerações sobre a potencialidade feminina
- Maria Luísa Macedo
- Jun 29, 2015
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“Não se nasce mulher, torna-se mulher.” Com essas palavras, Simone de Beauvoir indicou haver um grande caminho a ser percorrido entre o nascimento de um bebê do sexo feminino e o momento em que esse bebê se torna uma mulher na plenitude de seu ser feminino. Essa jornada, denominada por muitos psicanalistas analíticos como A Busca do Feminino, vem sendo atualizada nos últimos 60 anos pelas dramáticas mudanças sofridas pelas mulheres a nível sociocultural. Tais alterações tiveram seu início com a Revolução Industrial e, com a Segunda Guerra Mundial, a inserção social e a participação no mercado de trabalho por parte das mulheres cresceu significativamente. Com o Movimento de Emancipação Feminina dos anos 1960, as mudanças socioculturais experimentadas pelas mulheres atingiram seu ápice. No entanto, não é só a nível social e cultural que as batalhas em prol do feminino são empreendidas, mas também no íntimo das mulheres, via conflitos psíquicos.
Em seu artigo, Prazer, Dever ou Culpa? – Os Conflitos da Psique Feminina na Contemporaneidade, Sonia Maria Duarte Sampaio, sob a orientação de Cidnara Souza Vargas, aponta que “(...) No instante em que as mulheres começaram a lutar por igualdade de direitos em relação aos homens e saíram de seus lares em busca de desempenho profissional, teve início em sua psique um conflito arquetípico envolvendo o arquétipo da Grande Mãe e o arquétipo do Pai, com a anuência do arquétipo da Anima e do Animus. Como o arquétipo da Grande Mãe tem na maternidade e no prazer um de seus maiores símbolos, e o arquétipo do Pai tem no trabalho e no dever uma de suas maiores expressões, a luta da mulher em busca de sua realização profissional tornou inevitável o conflito entre esses dois arquétipos.”
É necessário que fique claro que ao tratarmos de feminilidade e masculinidade, estamos falando de conceitos que não podem se dissociar um do outro. Ao feminino, atribuímos o poder do Yin, que é receptivo e se movimenta gradualmente de baixo para cima, e ao masculino, o poder do Yang, ativo e que possui movimentos firmes e constantes. Tais forças podem ser ilustradas pela relação do óvulo e do espermatozóide, como escreveu Souza Vargas: “O óvulo é lento, redondo, suave em seus movimentos e deslocamento. O espermatozóide é ágil, rápido, agudo, pontudo e caminha sem parar.”
Sonia Maria Duarte Sampaio ainda chama a atenção para o modelo educacional imposto às mulheres pela sociedade ocidental patriarcal na qual estamos inseridas. De acordo com a autora, esse modelo educacional impede que a mulher expresse suas necessidades físicas e psíquicas e exercite de forma plena sua própria natureza feminina. O resultado, como afirma Duarte Sampaio, é a voracidade. “(...) a voracidade e a fome de ser mulher – (que) vêm assombrando a mulher moderna, de tal modo que o movimento feminista explodiu a partir de 1960 com tal agressividade, que acabou por afastar a mulher ainda mais de si mesma ao se inspirar em valores masculinos.”
Em Mulheres que Correm com os Lobos – Mitos e Histórias do Arquétipo da Mulher Selvagem, Clarissa Pinkola Estés cita a repressão do arquétipo da Mulher Selvagem, a essência, profunda e instintiva, da alma feminina, como a responsável pelo medo, depressão, bloqueio e falta da criatividade que assombram cada vez mais a mulher moderna. Pinkola Estés propõe um resgate a esse self puro, instintivo e não domesticado que habita a psique feminina e a anima da psique masculina como caminho para o profundo entendimento da alma. O ideal arquetípico proposto pela analista analítica se assemelha ao ideal de self descrito por Jennifer Baker Woolger e Roger J. Woolger ao analisarem o arquétipo feminino representado pela deusa grega Ártemis.
Jennifer Baker Woolger e Roger J. Woolger, em A Deusa Interior – Um Guia Sobre os Eternos Mitos Femininos que Moldam Nossas Vidas, afirmam que a confiança que Ártemis tem em sua feminilidade permite que ela explore com tanto vigor sua masculinidade. A deusa possui auto-suficiência e independência, qualidades que são seus maiores trunfos enquanto mulher. De fato, o cerne psicológico de Ártemis, como apontam os autores, é a androgenia. Duarte Sampaio afirma ser essa a maior de todas as liberdades reclamadas pelo mito do Graal, a atualização plena do feminino que possibilita a homens e mulheres serem masculino e feminino.
Além disso, a deusa é uma deusa virgem. Psicologicamente, virgindade não significa falta de contato sexual, mas auto-suficiência. Ou, como definem o casal Woolger, “(...) Quando uma mulher está plena e íntegra em si e por si mesma, ela precisa de pouca ou nenhuma energia masculina externa para complementá-la.” Sob essa perspectiva do sexo feminino, Maria Zélia de Alvarenga afirma que “(...) Saber-se com seu feminino e o seu masculino, em sendo uma mulher, significa atualizar-se como totalidade ímpar, intrinsecamente diferente de todos os demais seres humanos e, ao mesmo tempo, semelhante a seus pares.”
Conforme projetado nos muitos mitos gregos, os conflitos sociais que habitavam o inconsciente coletivo da época alimentavam a sapiência da importância de se manter viva uma consciência matriarcal. Jennifer Barker Woolger e Roger J. Woolger destacam que, ainda que vivessem em uma sociedade patriarcal, não era possível aos primeiros gregos conviver com as tensões femininas reprimindo-as por completo, como aprendemos em nossa sociedade ocidental. Os autores afirmam que os tais gregos pareciam estar cientes “(...) dos perigos de se negar o feminino e também do fato de que, quando estão presentes os dois lados de um problema, existe no mínimo uma possibilidade de se chegar a alguma resolução criativa.”
Ainda de acordo com Baker Woolger e Woolger, a história da religião grega através dos anos ilustra como uma sociedade matriarcal foi lentamente anuindo e entrando em acordo com os padrões patriarcais das tribos guerreiras nórdicas e arianas que a conquistaram. Nesse contexto psicossocial, que durou cerca de mil anos, foi implementada a divisão da Grande Deusa Mãe. Nas palavras de Jane E. Harrison, a Grande Mãe foi transformada em “deusas departamentais.” Cada uma dessas deusas, desmembradas da Grande Mãe original, tornaram-se antagonicamente divididas entre si. Portanto, as deusas individualizadas eram toleráveis pelo patriarcado na medida em que atuavam em isoladamente e, muitas vezes, competiam entre si.
Ao abrirmos mão da adoração à Grande Mãe, abrimos mão da possibilidade de coexistência de todas as potencialidades da existência humana: vida e morte, juventude e velhice, poder e abnegação, sabedoria e inocência e, claro, feminino e masculino. Sonia Maria Duarte Sampaio cita Whitmont para dar respaldo à idéia de que a Grande Mãe, nesse texto vista personificada pelas figuras arquetípicas da Mulher Selvagem de Pinkola Estés e da deusa Ártemis, quer ser resgatada a nível cultural a fim de promover a reintegração do feminino em nossa época. A demanda inconsciente do retorno da Grande Mãe é a instauração de um novo padrão de consciência - não personificado pelo retorno do matriarcado, mas sim por uma superação do sistema patriarcal.
A válvula de escape para esse conflito psíquico expresso a nível sociocultural e individual pode ser, como apontam o casal Woolger e Clarissa Pinkola Estés, o retraimento e a solidão. Esse é o grande trunfo da essência feminina. A possibilidade de estar só dá margem para expressão criativa do self, bem como para sua regeneração. As palavras imortais de Greta Garbo: “Quero ficar sozinha!”, ressoam como essa necessidade de recolhimento para que haja cura. A recuperação da nossa própria sensibilidade traduze-se como a consciência das potencialidades da Grande Mãe. Maria Zélia de Alvarenga conceituou essa possibilidade ao afirmar que “(...) Restituir ao feminino a sua autonomia significa reintegrar a sombra em todos nós e de todos nós, transcendendo a dicotomia das polaridades dissociadas, expressas através das defesas da consciência patriarcal.”
Talvez a melhor maneira de se integrar, enquanto mulher, de forma satisfatória no contexto sociocultural no qual estamos inseridas seja buscar o equilíbrio de nossa força feminina e masculina. A solidão criativa, regeneradora, exige movimento. Através da leitura, da escrita, da dança, do esporte, da costura, da gastronomia... A mulher artemisiana integrada dá vazão à natureza simbólica do seu instinto inconsciente em atividades solitárias, nas quais um passo para trás do mundo exterior equivale a um passo mais perto do potencial instintivo de perfeição.
Finalizo essa reflexão com as belas palavras de Marion Woodman ao discorrer sobre o significado do feminino: “O feminino é o vasto oceano do eterno Ser. Foi, é e será. Contém a semente para a vida, conhece as leis da natureza e executa essas leis com justiça, vive no eterno Agora. Tem seu próprio ritmo, mais lento que o masculino, movendo-se em espiral, parecendo que dá voltas ao redor de si mesmo, mas inevitavelmente sendo atraído para a luz. Pode trabalhar duro, mas sua atitude é sempre de jogo, porque ama a vida. E se esse amor é penetrado pelo masculino positivo, suas energias liberam-se num fluxo para a vida com um fluxo constante de nova esperança, nova fé e novas dimensões de amor.”
Maria Luísa Macedo
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