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Freyja

  • Bruno dos Santos Costa
  • Jul 20, 2015
  • 3 min read

Temos uma tendência, muito comum hoje em dia, a enxergarmos o viés masculino da sociedade moderna em termos de causa, mas talvez seja interessante ver o machismo não como causa, mas como consequência. Ou melhor ainda, como uma inter-relação dinâmica em que se alterna esse viés entre o proposital e o acidental. Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?


A cultura produzida por uma devida sociedade necessariamente será o reflexo de seu psiquismo coletivo. Agora, será que esse psiquismo é meramente a soma dos psiquismos de todos os indivíduos dessa sociedade, ou será que é de um psiquismo primordial que os indivíduos se alimentam? No final das contas, não importa – o que importa é que há uma relação acausal entre o coletivo e o individual.


Talvez a grande ruptura na história da sociedade ocidental seja o surgimento do monoteísmo, onde a veneração a um único deus suplantou a veneração de diversos deuses e/ou espíritos. Ora, uma das características dos politeísmos é que há, de maneira geral, tantas deusas quanto deuses. Na medida em que a religião é um reflexo da psique coletiva, temos aí um entendimento da alma humana como sendo multifacetada, cada deus representando um aspecto diferente da realidade comum. É um sistema que, apesar de muitas vezes incoerente, é completo.


A partir do momento em que se passa a venerar a unidade, essa unidade não é mais vista como uma totalidade de características opostas, mas como um ser unipolar. “Deus”, nessa concepção, é homem, ao invés de ser homem e mulher. Daí a necessidade de um Lúcifer – já que não podemos imprimir sobre Deus os valores negativos (Deus = homem = perfeito), criamos uma figura oposta a Deus. Todos nós lidamos com coisas ruins ao longo de toda nossa vida, então é necessária uma representação desses aspectos de nossa realidade. O problema começa quando essa representação é vista como ‘externa’ a nós. Nos politeísmos, cada deus tinha suas qualidades e seus defeitos – Zeus era o deus da justiça, mas era um traidor compulsivo.


Podemos enxergar o feminino da mesma forma. Ignore o discurso da Igreja, vá a um templo qualquer e veja quantas estátuas e retratos da Virgem Maria não há. O feminino, assim como qualquer aspecto de qualquer dualidade, sempre esteve e sempre estará presente. A repressão do feminino na história ocidental meramente joga o feminino para o inconsciente, e portanto para o Outro. Ou seja, o problema não é o monoteísmo per se (inclusive porque monoteísmo e politeísmo não são mutuamente exclusivos), e sim o fato de enxergar Deus como sendo apenas homem (ou apenas mulher!). Deus, sendo o reflexo de nosso psiquismo, é tanto homem quanto mulher, assim como todos nós, independente de genitais, somos masculinos e femininos.


Para reintegrarmos o feminino de volta à consciência coletiva, é necessário entendermos esses preconceitos (pré-conceitos) e como eles inconscientemente orientam todas nossas ações. Um exemplo de como tendemos a não enxergar o feminino, não porque ele não está lá, mas porque ele simplesmente passa desapercebido, pode ser visto em nossas concepções modernas acerca da cultura nórdica. A imagem que temos é altamente “patriarcal”, no sentido que enfatiza traços masculinos, mas na realidade a sociedade nórdica foi uma das mais igualitárias em questões de gênero – mulheres tinham tantos direitos quanto homens. Tanto que, apesar de conhecermos, de maneira geral, apenas a imagem dos guerreiros sendo recebidos em Valhalla por Odin, na própria mitologia apenas metade dos guerreiros mortos ia para Valhalla. A outra metade era levada por Freyja para sua fortaleza. Ou seja, uma divisão igual de masculino e feminino.


De fato, as noções dos nórdicos de masculino e feminino eram mais sutis. Odin, por exemplo, o líder de Asgard, Todo-Pai, era frequentemente ridicularizado por ser praticante de seidr, uma prática divinatória, considerada como sendo parte do papel social da mulher. Ou seja, sim, mesmo em uma sociedade mais igualitária ainda haviam noções de gêneros como papeis, mas quando o rei dos deuses, conhecido por sua sabedoria, tinha uma prática ‘feminina’, quem éramos nós para questionar isso? Na Escandinávia, homens eram bruxos e mulheres eram guerreiras.


O advento do monoteísmo levou a uma polarização mais extrema, as coisas ficaram mais preto-e-branco. Mas a realidade ainda se recusa a cooperar. A verdade é que somos todos inimaginavelmente complexos, e realmente, essas polarizações nos ajudam a navegar esse caos. O que falta é tomarmos de volta o que já é nosso, e trazer à tona o feminino que já habita em nós, homens e mulheres. Se conseguimos enxergar algo no Outro, é porque isso já é parte de nós. Vamos devolver a Freyja a metade de nossos mortos.

Bruno dos Santos Costa

 
 
 

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