top of page

Verdades preconceituosas: análise crítica de uma novela da globo

  • Writer: Érica Nunes
    Érica Nunes
  • Sep 29, 2015
  • 8 min read

A última novela da rede globo do horário de 23h Verdades Secretas teve fim na última sexta (25), a emissora considerou a novela um grande sucesso por ter conquistado altos níveis de audiência durante os meses da novela e em seu último capítulo. Escrita por Walcir Carrasco, roteirista de longa data da rede globo, essa tem uma trama envolvente, os diretores sabendo exatamente como acabar os capítulos para manter a expectativa para os seguintes. Além de todas essas características, a estética típica e conhecida da rede globo foi substituída por uma direção e fotografia mais ao estilo HBO.



Entretanto, o que havia de novo na estética e na direção não foi possível encontrar no roteiro e na trama, o roteirista fez questão de reiterar todos os preconceitos e discriminações possíveis de forma algumas vezes sutil e muitas vezes explícita. Vocês podem estar pensando "todos os preconceitos possíveis é um pouco demais", mas não para a rede globo, que sempre pode se superar neste aspecto. Contudo, para não ser totalitária, o que podemos encontrar na trama são casos de preconceito contra mulheres, pessoas acima do peso, gays, usuários de drogas, negros, terceira idade e pessoas de baixa renda, vulgo "pobres".


Primeiramente, toda a trama se baseia no caso entre Alex e Angel: ela é uma garota de classe média baixa que vive com a mãe e a avó. Em um momento de necessidade financeira da família, Angel que já estava trabalhando como modelo, vê como única opção fazer Book Rosa (codinome para prostituição). Em seu primeiro programa ela conhece Alex, milionário que tem um gosto especial por garotas menores de idade, ela quase desiste de fazer o programa mas com jeitinho ele consegue a convencer de passar a noite com ele.


A partir desse envolvimento, Alex cria uma certa obsessão pela jovem, fala com Fanny dona da agência de modelos solicitando-a que a garota pare de se envolver com qualquer outro cliente e passe a ser exclusivamente dele e que seus trabalhos como modelos sejam restritos, ou seja, que ela tire algumas fotos de vez em quando só para não desconfiar de nada. Aqui já vai se mostrando a relação de poder entre um homem rico e empoderado nos seus 45 anos e uma garota de apenas 16 anos. Muito irônico pensar em toda a repercussão do beijo gay do casal lésbico na novela Babilônia e absolutamente nada foi comentado acerca da prostituição de garotas menores de idade que acontecia somente uma hora depois.


Logo voltaremos para Angel e Alex, algumas tramas subjacentes também são muito interessantes para falar sobre preconceito. Por exemplo, o caso de Fanny (Marieta Severo) e Antony ( Reinaldo Gianecchini), ela é a dona de uma agência de modelos, uma mulher elegante, bonita e com uma ótima condição de vida que está num relacionamento com Antony, um homem que pretendia ser modelo mas teve sua carreira frustrada e passou a ser completamente dependente financeiramente de Fanny. Mesmo assim ele a traía em todas as oportunidades possíveis, na maioria das vezes ela descobria, ele justificava dizendo 'melhor você ficar comigo, não vai achar ninguém que te queira velha desse jeito'. Essa personagem apesar de ser uma senhora em ótima forma e muito elegante foi ofendida de 'velha' e 'acabada' diversas vezes durante toda a trama, muitas vezes seu sofrimento com isso foi expresso por meio de lágrimas e degradação da própria autoestima. Fica claro no caso de Fanny um modelo estético extremamente opressivo sobre as mulheres retratado na novela, que não tem sequer o direito de envelhecer em paz e mesmo quando é a mulher quem tem o poder financeiro dentro da relação continua dependente emocional do homem aceitando tudo ao invés de se empoderar.


No final da novela, Antony larga Fanny para ir para a França com uma moça mais jovem, a atitude de Fanny frente ao abandono é de total desespero e de implorar de joelhos para ele ficar. Que tipo de idéia de afetividade e relacionamento a Globo passa com este comportamento para as mulheres e meninas? "Melhor sofrendo com ele do que sozinha sem ele" o que incentiva claramente mulheres a continuarem em relações abusivas e desleais.


Também podemos encontrar na trama um caso extremo de gordofobia e discriminação contra "pobre" no personagem de Eziel, um jovem adolescente acima do peso que estuda na escola de Angel e Giovana, uma escola de alto nível social de SP. Seus pais tem uma cantina, por isso ele frequenta a escola. Em todas as oportunidades possíveis o garoto é vítima de bullying por estar acima do peso e por ser "pobre" demais para estar ali, o garoto é humilhado inclusive dentro da sala de aula na presença dos professores que simplesmente não se posicionam acerca do fato. Em um dos episódios a professora tem uma atitude de culpabilização sobre o garoto quando outros colegas jogam piadas sobre sua gordura ela diz algo como "Eziel realmente não faz bem estar gordo desse jeito, você deveria escutar seus colegas e controlar sua alimentação". Em nenhum momento houve nenhuma atitude de conscientização dos outros alunos acerca dos problemas causados pela discriminação e pelo bullying.


Na novela só existiram dois homossexuais, o mais destacado deles na trama é o Visk que trabalha na agência de Fanny, um personagem muito simpático e que conseguiu muitos fãs pelo caminho. Único detalhe, Visk foi convertido em hetero durante a trama. Em algumas bebedeiras com a amiga Lurdeca eles se relacionam sexualmente, no desenrolar da trama eles acabam criando uma relação amorosa. Ou seja, todo mundo pode ser hétero é só uma questão de oportunidade. Durante a novela, o personagem Visk é desempoderado de todas as maneiras possíveis, as pessoas só se referem a ele como "libélula" e em todos os embates que ele tem com homens heteros durante a trama eles o invalidam com argumentos misóginos que o associam com o feminino e dizendo que ele está os desejando e que está discutindo por que quer ter relações com eles. Em resumo, ele não tinha voz em absoluto. Em muitos momentos o próprio personagem reclama de ser tão humilhado.


Outro grave, gravíssimo, dessa novela é que ela só contavam com uma personagem negra e foi exatamente ela que foi esfaqueada pelo noivo, por razão de um ciúmes doentio. Será que isso nos lembra algo? Será que são as milhares de mulheres negras que perdemos todos os anos vítimas do feminicídio por companheiros violentos? Essa seria a chance da emissora se redimir um pouco e dar um pequeno discurso sobre a violência contra a mulher e a seriedade deste problema em nosso país e no mundo, ainda estamos esperando esse discurso chegar. O máximo que aconteceu foi 'nossa, que horror'. Além de que Fanny mandou comprar uma coroa de flores barata para o enterro da moça "por que gastar com morto pobre é desperdício de dinheiro".


A personagem Larissa muito aclamada pela atuação de Grazi Massafera foi uma modelo usuária de cocaína que se prostituía para financiar o vício e sua família. Durante a novela a personagem acaba transitando para o crack e a partir daí sua vida só vai piorando e ela acaba morando na Cracolândia. A realidade do usuário de drogas é realmente muito dura e essa é uma questão que tem que ser problematizada. Só que alguns aspectos nos chamam atenção sobre o enredo da personagem Larissa, com o agravamento do vício ela passa a se prostituir com outros moradores de rua para conseguir drogas, o embotamento afetivo da personagem e a sua fuga da realidade demonstram seu sofrimento com a sua realidade.


Na última semana da novela, Larissa sofre um estupro coletivo por outros moradores de rua, o que nos chama atenção é que esse fato não levantou o mínimo questionamento da mídia, ou seja, a violência contra a mulher silenciada das mais diversas formas. O mais grave no caso do estupro coletivo de Larissa é que ele foi colocado pela emissora como um estupro corretivo, por que quando é estuprada ela resolve sair das drogas e "encontrar Jesus". Em nenhum momento as pessoas que a ajudaram buscaram qualquer tipo de criminalização dos estupradores. Total banalização da violência contra nossos corpos, como se a mulher usuária de drogas não tivesse direito sobre o seu corpo a partir do momento que começa a se drogar.


Voltando ao caso de Alex e Angel, por razões de narrativa o casal acaba tendo uma briga e se separando, Angel acha que Alex estuprou sua amiga, o que não é verdade mas ela só vai descobrir isso mais tarde. Alex que está obcecado por Angel acha que a solução é se casar com a mãe dela para ficar perto da garota. Ou seja, o homem manipulador que brinca com a vida das mulheres ao seu bel prazer.


Carolina (mãe de Angel) quando se casa com Alex passa a reproduzir todos os esteriótipos de gênero possíveis, para de trabalhar à pedido de Alex e passa a ter vida de "dondoca" vivendo de futilidades como ir no salão e ao shopping para ficar bela para o marido rico. Alex a trata em muitos momentos de forma grosseira durante a trama, só que ela justifica que ele está cansado, que trabalha demais e acaba se culpabilizando pela grosseria do marido na maioria das vezes. Ou seja, a mulher sendo colocada no lugar de se sacrificar pelo outro e de silenciar seu sofrimento, mesmo quando ele a chama de "burra", por exemplo. Ela também repassa todos esses preconceitos de gênero à filha dizendo que é função dela cuidar de Alex quando ela não está, que Angel deve pedir a comida para o padrasto, fazer sanduíche e sempre perguntar se ele está com fome. Por que certamente a mão de Alex cairia se ele tivesse que ligar para um delivery. Vemos aqui novamente a mulher sendo colocado no lugar de servidão em relação ao homem.


Depois de muita pressão de Alex e mesmo ameaças de se separar de sua mãe, dizendo que elas não teriam dinheiro para viver, Angel acaba cedendo e traindo sua mãe com o padrasto. De novo acontece a desunião entre mulheres em favor de um homem que as valide no lugar de objeto de amor e desejo.


No momento em que Carolina entra em contato com a verdade mesmo tendo tentado de todas as formas negar a realidade, ela confronta os dois, mostra sua decepção e com uma arma os enfrenta. Mas é claro que ela não matou o causador de todo o conflito e desunião, ela se suicidou e de novo se colocou no lugar de sacrifício pelo outro e ainda deixou uma carta para sua filha dizendo que ela fosse feliz. A personagem se sacrificou duplamente, deixando o perdão para sua filha e saindo da jogada para que eles pudessem viver da forma como quisessem.


No enterro de Carolina todo o julgamento moral recai sobre Angel, em nenhum momento da novela Alex é confrontado ou culpabilizado pela morte de Carolina. Repetindo aquele senso comum de que homem é assim mesmo, tem desejos irresistíveis e não consegue controlar, então quem deveria impedir que tudo tivesse acontecido era Angel.


Depois da morte de sua mãe, Angel se dá conta de que tinha feito tudo aquilo por pressão de Alex, o culpando pela morte de Carolina ela o atrai para o iate dele e usando a arma de sua mãe ela atira. Ao matar seu padrasto e inventar uma história para a polícia sobre a morte dele, Angel subverte alguns dos papéis de gênero que são esperados dela de doçura e passividade, essa é a primeira vez que isso acontece na trama. Só que ao final da novela ela consegue sua remissão oficial - o casamento - estar de volta no contexto social e ter sido "escolhida" por outro homem é a prova de seu perdão.


Concluo com esta análise o caráter profundamente conservador e naturalizador de preconceitos e relações de poder desiguais presente nesta obra televisiva. Lembrando que a televisão é uma concessão do estado, sendo assim, todo meio de comunicação televisivo deve ser pautado sobre o compromisso social o que claramente não acontece aqui. Que grupos estão sendo beneficiados com este tipo de doutrinação ideológica usando o nosso tempo televisivo?

Érica Nunes

 
 
 

Commentaires


Siga o coletivo Inconsciente:
  • Facebook Social Icon
  • YouTube Social  Icon
  • Instagram Social Icon
 POSTS recentes: 

© 2016 por coletivo inconsciente.

bottom of page