Uma história sobre a amizade feminina
- Érica Nunes
- Feb 18, 2016
- 4 min read

Escolher o tema da amizade entre as mulheres pode parecer um pouco óbvio inicialmente, já que a amizade entre as mulheres hoje em dia é considerado um dado inegável. Por isso foi muito surpreendente descobrir por meio do estudo da história das mulheres que até o séc.XV a amizade era considerada um vínculo que acontecia somente entre homens.
Desde sempre os homens escreveram sobre as virtudes da amizade masculina, um sentimento nobre que em sua verdadeira forma favorecia a execução da cidadania e da vida militar. No período entre 600 a.c até 1500 d.c já existiam publicações sobre a amizade mas elas eram completamente restritas aos homens, estamos falando aqui de praticamente 2 mil anos em que os laços entre as mulheres foram ignorados pelos homens que escreviam.
Além da indiferença aos vínculos das mulheres, alguns autores como o famoso filósofo Montaigne não reconheciam nas mulheres a capacidade de fazer vínculos tão profundos como a amizade, ele em especial declarou que a alma das mulheres não seria firme o suficiente para suportar tão nobre sentimento. C.S. Lewis escritor conhecido por Crónicas de Nárnia afirmou que a presença de mulheres em círculos sociais masculinos havia desvirtuado completamente a amizade entre os homens.
É claro que sempre houveram entre as mulheres vínculos de afeto e cooperação, só que seu valor e sua importância social foram simplesmente negados durante anos e muito foi escrito sobre os perigos das más influências na vida de uma jovem mulher. Durante um certo período histórico, onde a mulher era associada à imagem de Eva ela também passou a considerada um ser cheio de desejos e vaidades o que em muito reforçava o discurso de uma suposta rivalidade 'natural' entre as mulheres.
As primeiras a escrever sobre a amizade feminina foram as freiras que viviam em conventos, podemos encontrar em seus registros lindas histórias de amizade e companheirismo que duraram vidas inteiras no claustro. Somente a partir do séc. XV as mulheres, especialmente europeias, começaram a escrever mais frequentemente suas histórias de amizade, já que antes disso pouquíssimas eram letradas. O que nos traz a reflexão de que ao mesmo tempo que o convento é um lugar extremamente doutrinado ideologicamente, ele é também altamente subversivo já que permite relações entre mulheres que não são mediadas por um olhar masculino.
Dessa forma percebemos que até esse período a amizade feminina era considerada de pouca importância dentro do processo de subjetivação da mulher, já que as burguesas se mantinham no âmbito doméstico e as trabalhadoras tinham muito pouco tempo que pudesse ser dedicado a uma amizade pelo excesso de responsabilidades domésticas. Além de que a vida das jovens fora do âmbito familiar era quase sempre mediada por um parente.
A partir da escrita das mulheres e da abertura de sua participação em outros âmbitos sociais foi se espalhando a idéia de uma real amizade entre as mulheres. Especialmente a partir de séc.18, passaram a existir os clubes de mulheres, os quais muitos deles passaram a ser ambiente para discussões políticas pelos direitos das mulheres, gerando o início oficial do sentimento de sororidade. Observando esse fato, podemos perceber de forma clara como a união entre as mulheres é importante para a luta política, muitas das nossas vitórias foram alcançadas a partir do momento em que fomos fortalecida pela nossa união.
Depois disso uma grande quantidade de conteúdo literário foi produzido acerca da amizade das mulheres, suas trocas e as formas de subjetivação que lhes são próprias. Houve inclusive uma certa feminização da amizade, já que as características necessárias à manutenção das relações entre amigas(os) são as mesmas que são culturalmente associadas às mulheres - afeto e cuidado, por exemplo.

Graças a mulheres fantásticas que escreveram sobre os nossos afetos, hoje a amizade entre mulheres é reconhecida como um afeto necessário na vida de uma mulher. Porém, as marcas históricas continuam aí caracterizando as nossas relações umas com as outras usando os mesmos discursos que eram usados no séc. XVIII. Grande parte desse imaginário social retrata as relações entre mulheres como sendo marcadas pela rivalidade, inveja e falsidade por meio da mídia, especialmente televisiva.
Nesse momento no Brasil onde podemos perceber mais claramente a incitação da rivalidade entre as mulheres é dentro de algumas músicas de funk, por exemplo, em que as cantoras se referem a outras mulheres como recalcadas, invejosas e concorrentes - uma dessas músicas é cantada por uma funkeira mirim chamada Mc Melody de apenas 10 anos de idade onde ela canta "eu entendo as recalcadas que me ofenderam, se eu fosse elas também queria ser eu".
Toda vez que uma menina ou uma mulher escuta uma música desse tipo e passa a ver as outras como concorrentes nós nos enfraquecemos em nossa sororidade e especialmente em nossa luta política. Como podemos ver pela história, a amizade - sentimento gerador de fraternidade - sempre foi usada com interesses políticos de fortalecer a identidade de um grupo quase sempre masculino, prova disso são instituições como as forças armadas.
Foucault nos lembra sempre que o privado é político, todas as nossas interações pessoais estão ligadas a relações de poder e os discursos criam realidade em nossas vidas. Por isso, é muito importante combater certos preconceitos que diminuem o valor da amizade feminina, chamando mulheres de falsas e competitivas por exemplo. Mesmo que não seja verdade isso acaba sendo introjetado em muitas pessoas como um fato, inclusive nas próprias mulheres, o que nos isola e nos enfraquece.
É muito importante lembrar que uma boa rede social de amigas e amigos é um fator de proteção da saúde mental e física das mulheres, deixando-as menos vulneráveis a relações abusivas e violentas por exemplo. Desconstruindo também alguns caminhos privilegiados de subjetivação que colocam como foco da vida da mulher o companheiro e os filhos. Algumas iniciativas interessantes tem sido criadas em busca de uma maior união entre as mulheres, como a página Vamos Juntas e Empodere Duas Mulheres por exemplo. Elas buscam dar visibilidade e incentivar atitudes positivas entre mulheres, alguns depoimentos são bem emocionantes e valem a pena ser lidos, nos provando a força das união feminina.
Esse texto é dedicado a minha amiga e companheira de projetos Malu e a todas as minhas amigas que fazem o meu mundo um lugar muito melhor.
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Érica Nunes, psicóloga clínica, feminista e blogueira
erica.nunescs@gmail.com
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