Eu também já fui uma "coxinha"
- Bruna Souza
- May 30, 2016
- 8 min read

Talvez a maior diferença do que sou hoje para o que eu fui em algum momento da minha vida esteja no fato de que eu não acredito mais que as oportunidades estão disponíveis “para todas as pessoas de forma igual”.
Houve um tempo em que eu acreditava que todo cidadão era capaz de alcançar o que queria, bastava ter fé e força de vontade.
Eu acreditava que as pessoas deveriam conquistar as coisas por mérito, e que o esforço, o trabalho duro, eram os únicos caminhos para se alcançar o sucesso e a felicidade. Eu, enfim, acreditava no velho discurso liberal.
Mas eu mudei.
Algo na minha vida fez com que eu rompesse da minha casca dura, e começasse a compreender outras realidades.
E vale dizer que mudei não só por que eu quis, “escolha própria escolheu a solidão”. Eu não mudei por que eu vi, de repente, na “Guerrilha” mais sentido e por isso assumi uma escolha ideológica. Eu mudei por que a vida me colocou num lugar onde eu precisava sair da minha zona confortável.
Tudo começou quando eu, acostumada a usar da história da minha família para justificar as minhas crenças, comecei a questionar a minha própria estrutura social, o lugar de onde eu vinha.
A história da minha família que eu repetia, ou mais especificamente, a história do meu pai, é a história de tantos outros cidadãos brasileiros que saíram de uma vida pobre em dinheiro e trabalharam duro para atingir uma estabilidade (ou uma muito boa, condição social financeira).
Eu admirava essa história, e ainda admiro, por que ela mostra a força e a garra de uma pessoa que acreditou que podia realizar alguma coisa e foi lá e fez.
No entanto, o que antes eu não via dentro dela, ao repeti-la como pretexto para a tal “igualdade de oportunidades”, é que ela é específica de algumas pessoas e grupos de pessoas. Que essa história, não é a história de todos, e mesmo de muitos. E que ela está ligada ao meu núcleo social, o lugar de onde venho.
Mas por que eu era uma espécie de ‘coxinha’, e por que estava, com certo excesso, dentro da minha própria massa e recheio, eu ignorava o fato de que outros salgadinhos, como os quibes, os pastéis, as empadinhas, advinham de outros ingredientes. Eu ignorava a consideração importantíssima de que a procedência e complexidade de cada pessoa, ou de cada salgadinho, dizem muito sobre o espaço da “mesa” em que eles poderem ocupar numa sociedade ou festa.
Mas a verdade é que eu não era uma coxinha totalmente alienada dentro da minha massa específica. Eu sabia das questões de minorias e refletia sobre problemáticas sociais como o racismo, o genocídio indígena, as necessidades alimentares. Sabia que quem tem fome precisa de comida hoje, mas no cerne do íntimo das minhas convicções, eu não sentia com vigor o lugar de onde se falavam essas coisas.
Eu penso que de certa forma eu ignorava o fato de que os outros “salgadinhos” sofriam de pressões e temperaturas diferentes nas suas feituras do que eu, na minha coxinha bem vista na sociedade. Que ao manter uma discurso de que “somos todos iguais com as mesmas oportunidades”, eu estava a ignorar uma realidade: a de que, socialmente, nós não somos!
O fato é que eu não me comportava como fazia por que tinha uma índole ruim. E não é que eu não me importava com as questões sociais. Eu não era o tipo de coxinha no estilo “barbie girl”, que só pensa em batom e BBB. Não. Pelo contrário. Desde cedo eu quis fazer parte da luta. Desde cedo me fizeram chorar as crianças que sabia vítimas de fome e doença nos recônditos da África.
Porém, no meu discurso de coxinha, eu também tendia a compactuar com pessoas que pensavam como eu, e isto me impedia de ver além daquilo eu entendia. Então, eu era do tipo de coxinha que se importava. Do tipo que utiliza, do discurso político liberal para explicar que as pessoas precisavam conquistar as coisas por seus méritos próprios. Como se as oportunidades realmente existissem de igual modo.
O que eu não via, porém, por detrás da nuvem das minhas crenças, sonhos e entendimentos sobre a vida, era a própria realidade social do meu País.
Ao criticar e desacreditar de muitos programas “ assistencialistas”, como o bolsa família e as cotas para universidades, eu ignorava uma realidade que eu que eu pensava que entendia. Eu ignorei que isso era parte de uma vida que eu não participava.
Até o momento em que uma reviravolta aconteceu.
Há pouco tempo atrás, menos de um ano, eu fui morar dentro de uma comunidade onde a renda da maioria das pessoas era consideravelmente abaixo da minha.
O que me levou a ir morar nesse lugar foi meu próprio interesse em ajudar pessoas a construir sonhos, (ajudar a “pescar”), e ele veio como um convite de uma amiga pra viver junto dela nessa comunidade.
Logo de início, eu comecei a entender que haviam questões dentro de mim das quais eu nunca tinha olhado. Percebi que muitas pessoas do meu círculo social consideravam parte das pessoas que viviam perto de mim como pessoas “ameaçadoras”. Que de alguma forma elas se sentiam ameaçadas em suas presenças.
Lembro do dia em que percebi isso com clareza.
Eu havia convidado um amigo para tomar um banho de lago (no famoso lago Paranoá de Brasília), e ele me disse que o problema daquele local eram as “pessoas de baixa renda que iriam ali”. Eu retruquei e disse “Mas qual o problema?”, e ele me falou de sua insegurança.
Diante da expressão do meu colega, comecei a pensar em quantas vezes eu mesma também havia me sentido ameaçada. Ameaçada e receosa somente de estar ao lado, seja onde fosse, de pessoas que eram, aparentemente, diferentes do meu meio social.
Esse fato gerou em mim uma reflexão profunda sobre a densidade das questões históricas e culturais, das quais a gente vive e pensa já ter “superado”. Entendi com ele que o preconceito que eu achava que não tinha ,na verdade estava tão impregnado dentro de mim como o estava na própria sociedade, junto de ‘meus iguais”.
A partir de então comecei a entender melhor o que dizem do racismo não ser só uma questão de discurso. Que o fato de eu me sentir vulnerável e insegura diante de certas pessoas não é algo que advém de dados estatísticos e estudos,mas pelo que aquela pessoa, com sua cara e vestimenta, representa dentro do meu sistema psíquico-emocional. Que isso não se trata de uma mera questão lógica, de quem não tem vai sempre querer o que o outro possui. Mas que isso era muito mais uma questão de diferenças sociais e econômicas que recai sobre a nossa forma de ver o mundo, e as pessoas.
Ao viver próxima de pessoas que outrora eu tivera alguma forma de medo ou julgamento, penso que passei a entender mais sobre esse preconceito social, e entender que ele era mesmo um conceito , e não uma experiência vivida.
Pude sentir que a vivência, nestes espaços, não equivalia as minhas concepções antigas. Que eu não corria do que risco que sentia, e que se sim, o quanto eu também não seria responsável? Passei a compreender também um pouco mais sobre a lei invisível das atrações; que diz que atraímos as circunstâncias de acordo com os nossos posicionamentos tanto físicos quanto emocionais.
Finalmente, uma parte de mim entendeu que pra minha vivência e aprendizagem, as experiências tendem a ser muito mais fortes do que uma mera ideologia. Percebi com isso, que, no meu caso- era necessário viver uma aproximação mais íntima com aquilo que eu gostaria de mudar, e foi preciso bastante tempo e conversa com as minhas próprias convicções.
Dessa forma, foi assim que comecei a refletir sobre os muros sociais que estão construídos e a partir dele posteriormente passar a aceitar uma série de oportunidades para continuar a viver essas experiências.
Iniciei trabalhos no campo de projetos sociais e passei a viver, no dia a dia, inserida um pouco mais, em comunidades que outrora eu me situava distante.
Foi no meio de tudo isso que a história do bolsa família aterrissou.
Como um desfecho para entender o que ainda não havia “processado” e me posicionar, ao menos um pouco, politicamente, me inscrevi para participar de uma conferência política onde muitos dos programas assistencialistas faziam parte dos debates. Meu papel de voluntária foi de facilitar muitos desses debates, de modo que tive que estudar, escutar e participar das dimensões específicas de muitos projetos sociais que criticava até então.
Nessa conferência pude estar, lado a lado de pessoas líderes de movimentos dos mais diversos, com o ponto em comum de que eram voltados todos para populações de minorias que buscam legitimar seus direitos. Esse contato mais próximo, mais uma vez, me permitiu entender de experiências vividas de pessoas que passam o cotidiano afastado do meu. Me permitiu abrir os olhos mais uma vez para enxergar que muitas das coisas que eu pensava que conhecia, na verdade eu não tinha um entendimento verdadeiro.
Uma dessas coisas era o bolsa família.
Eu sabia que parte das exigências e considerações sobre o bolsa família considerava uma série de pressupostos. Que não se tratava apenas de“dar dinheiro e estimular as pessoas a não trabalharem”. Mas eu não tinha a consciência de suas nuances. Não sabia de suas implicações econômicas e políticas e não tinha os dados de seus impactos sociais.
Me faltava a informação dos números advindos de pesquisas com controle apartidárias relacionadas ao projeto, e também de questões subjetivas importantíssimas apresentadas por pessoas que participam dessas políticas (pessoas das quais omitem não somente opiniões mas também informações sobre estes programas).
Mais uma vez, me deparei com meu próprio preconceito e com a minha própria ignorância. E tal fato me fez ver que, apesar de tanto esforço por ser mais bem informada, ainda há sempre muito mais a descobrir e a desinformar.
Atualmente, não sei se deixei de ser uma coxinha… As vezes ainda me pego com um pensamento um tanto reacionário. Mas entendo que a minha forma de ver a realidade vai muito de acordo com aquilo que sou capaz de ver, com as minhas próprias limitações.
Por isso, hoje entendo um pouco mais da importância da escuta, e vejo que muito do que as pessoas dizem, nós dizemos, tem muito de falta de informação.
Vejo que na minha experiência pessoal, muito pouco ainda eu sei sobre política, constituição, leis e o que de fato e explode nesse momento aqui no centro do País. Acredito que a maioria de nós também não sabe.
Diante de isso tudo, e do hit político que tem aparecido como bombas de gás lacrimogênio ou nos noticiários abertamente tendenciosos, tenho vivido minha vida em busca de reflexões internas mais profundas, banhadas em uma espécie de calma.
Quando ouço falar de corrupção busco dentro de mim as vezes em que tenho sido corrupta. E não sei o motivo por quê tenho me lembrado tanto do nosso saudoso Raul. O rei do rock.
Penso no Raul com seus trajes esquisitos, seus trejeitos particulares. Vejo ele cantar nos videos do Youtube, e acho que o carrego como ídolo.
Fico, enfim, aqui pensando como o mundo seria tão mais interessante — e divertido- se houvessem mais Rauls por aí… nas ruas com suas manias, nas câmaras onde vivem os deputados.
Talvez a gente devesse tentar um dia, convidar um deles para um debate político. E realmente ouvir o que ele teria a nos dizer.
Bruna Regina Souza
Fonte: https://medium.com/@brunaregina/eu-tamb%C3%A9m-j%C3%A1-fui-uma-coxinha-e16bbbe1ed9d#.ayz7j5aeb
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