Solidão não, amizade comigo mesma
- Érica Nunes
- Jun 3, 2016
- 5 min read

A solidão é um tema pouco discutido na contemporaneidade apesar de ser uma reclamação recorrente nos consultórios de psicologia, quando trazido à tona é geralmente associado à estados de mal estar psíquico, sofrimento e a uma enorme dificuldade encontrada por algumas pessoas em estarem sozinhas. Isso nos ilustra brevemente o significado que a solidão foi ganhando na nossa sociedade pós moderna.
Os papéis atribuídos aos gêneros em nossa sociedade tem grande influência no significado da solidão para ambos os sexos. Esses papéis e a nossa relação com a solidão tem profundas reverberações na forma de contato que temos com os outros, nível de dependência que se estabelece nas relações conjugais, amorosas ou familiares e, em especial, o contato que as mulheres tem com elas mesmas e a construção subjetiva que se fará a partir disso.
De acordo com Zanello (2016) são construídos para as mulheres caminhos privilegiados de subjetivação nos lugares de mãe e esposa que são basicamente funções relacionais, ou seja, estão sempre ligadas a um outro que necessita de atenção, amor ou cuidado o que acaba educando dessa forma as mulheres a buscarem estar no lugar de ser-para-outro.
Podemos localizar aí o começo de uma construção subjetiva que corrobora com o que defende Basaglia (1983), ela nos mostra que as mulheres em nossa sociedade se constroem como um corpo-para-outro, um corpo que foi "feito" para servir - quando ela toma conta dos filhos, de casa, quando ela usa seu corpo para dar prazer aos homens, amamentar ou cozinhar para a família, por exemplo. Isto é, o corpo feminino é moldado para estar sempre disposto a dar cuidados, afagos e prazer para os outros. A grande problemática disso é que um corpo que se molda para servir ao outro raramente vai dedicar-se a si, aqui é onde começam as peculiaridades da mulher em lidar com a solidão.
Outra problemática séria relacionada a isso é que a sociedade passa a ver o corpo da mulher como estando disposto a servir ou ser usado, o que se configura como a base da cultura do estupro e da escravidão sexual tema tão abordados ultimamente depois de tantos anos de obscurecimento.
Marcela Lagarde, autora feminista mexicana, aborda o tema da solidão feminina como vetor de construção de autonomia. Ela explora o lado construtivo e necessário da solidão para a subjetivação fora da relação com os outros, ou seja, favorecendo o contato com nós mesmas. Aproveitarei a definição de solidão apresentada por essa autora, que particularmente acho muito bonita:
"como o tempo, o espaço, o estado onde não há outros que atuam como intermediários com nós mesmas" (2013, pg.5).
Dentro dessa lógica de construção da identidade de gênero das mulheres as meninas são desde o começo de suas vidas educadas a assumirem essas funções de mãe e esposa por meio de suas brincadeiras. A escolha dos brinquedos de uma criança é uma ato extremamente político, a brincadeira é um ensaio para a vida, quando são dadas bonecas-bebês para as meninas e armas para os meninos existe uma fronteira social e comportamental bem clara que está sendo estabelecida neste momento.
As brincadeiras tipicamente propostas às meninas são ligadas geralmente ao cuidado, embelezamento para o outro e o treinamento de uma certa postura de passividade e doçura. Podemos observar isso nas brincadeiras de bonecas e os kits de cozinha como um treinamento à maternidade e as fantasias de princesa como o treinamento de uma certa performance de espera e passividade assim como o início de estabelecimento do dispositivo amoroso.
A consequência desse afastamento de si mesma ou desse eterno agenciamento de si por meio de outros é o que se chama de "dependência vital", termo empregado por Lagarde (1990) para falar da dependência construída nas mulheres. A autora coloca que essa dependência foi construída em confrontação com a independência masculina, isto é, os homens constroem a sua independência frente a uma dependência feminina. O que é extremamente estratégico para eles, já que construir as mulheres como dependentes de outros e cuidadoras as mantém em casa, cuidando de sua prole enquanto eles aproveitam a liberdade.
Além dessas barreiras invisíveis as mulheres também vivenciam barreiras visíveis a vivência da solidão. A solidão feminina foi em alguns períodos da história ocidental e das áreas "psi" considerada como patológica, já que o conhecimento sobre a mulher era baseado numa leitura patriarcal de sua função na sociedade.

Showalter (1985) traz exemplos claros disso quando nos conta a história da loucura feminina na Inglaterra vitoriana, durante este período existem muitos registros de internações de mulheres, especialmente de jovens moças consideradas histéricas, onde os sintomas que davam motivo à internação eram: vontade de ficar sozinha, gasto de tempo com leituras filosóficas, desejo de privacidade, desinteresse pelos cuidados da casa e outros nessa linha. Ou seja, suponho que eu e você leitora desse artigo estaríamos nessa lista. Está claro que havia uma demanda natural por momentos de solidão entre essas jovens que queriam se conhecer e questionar o mundo em que viviam e ela foi completamente patologizada.
Todo esse desencorajamento vivido pelas mulheres para passar tempo sozinhas pode parecer inocente só que tem consequências sérias em seus psiquismo e vivência afetivas, gerando especialmente dependência emocional - fazendo com que muitas mulheres tolerem relações abusivas e violentas por medo de ficarem sozinha e dificuldade em dar sentido a sua vida quando o outro falta para dar sentido a ela - gerando muitos casos de depressão e ansiedade.
Muitas mulheres entram em depressões graves quando se separam ou quando os filhos saem de casa por exemplo, percebe-se que o grande gerador de sofrimento é na maioria das vezes a falta de um outro para dar sentido a sua vida já que as relações acabam funcionando como distanciadores/amortecedores da relação nem sempre fácil consigo mesma.
Existem mulheres que desde o começo de suas vidas perceberam as belezas de passar tempo sozinhas e investir nos próprios interesses, elas apresentam uma independência emocional muito maior sendo um fator de proteção à sua saúde mental, diminuindo as chances de seu adoecimento psíquico e as fortalecendo para buscar sua independência emocional e financeira.
Esse hábito de apreciar o tempo consigo mesma quando não se constrói naturalmente na vida da mulher pode se construir de forma intencional quando a mulher busca ter seus próprios interesses ou robes de qualquer natureza que sejam, quando ela se dá prazer fazendo alguma coisa para se fazer feliz como ir a um filme que ela estava muito interessada em ver ou viajar para a exposição de sua artista favorita, pagar um jantar para si mesma naquele restaurante que ela adora, tirar um tempo para fazer uma maratona dos filmes de sua/eu diretor(a) favorita(o), por exemplo.
Deixar de localizar a felicidade da vida nos momentos em que se está com o outro é profundamente libertador, já que se deixa de esperar pelo outro para ir se dar prazer. Ou seja, eu não preciso esperar que alguém me leve no restaurante que eu adoro eu posso fazer isso por mim, ou alguém que me convide para ver o filme que estou louca para ver eu posso fazer isso por mim. Dessa forma a vida saí do estado de espera pelo outro e passa a ser uma eterna vivência de amizade com nós mesmas.
Espero que esse texto tenha ajudado a refletir sobre a vivência da solidão em nossas vidas. Deixe o seu comentário.
Érica Nunes, psicóloga clínica, feminista e blogueira do Coletivo Inconsciente
erica.nunescs@gmail.com
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