O mapa na palma da mão
- Bruno dos Santos Costa
- Jun 22, 2016
- 8 min read
Já é problemático que essa palavra tenha as conotações que tem no senso comum, mas talvez a questão seja mais profunda ainda – o próprio significado da palavra. Nos parece que chamar aquilo que praticamos de astrologia é a mesma coisa que chamar a exploração de novos territórios de ‘cartografia’ – ou seja, o termo não deixa de ser correto, mas não captura todos os elementos da prática.
O termo ‘astrologia’ é correto no sentido que realmente faz alusão ao astros e aos mapas que descrevem as posições desses astros. Além disso, certamente não há nada de errado com a outra metade, ‘-logia’. No entanto, a ênfase nos astros parece vir às custas da subjetividade inerente à prática astrológica. Nesse sentido, a astrologia passa a ter mais em comum com a astronomia, que busca por definição as regras e leis que regem os movimentos dos astros. A astrologia ‘receita-de-bolo’, dos horóscopos e dos testes de compatibilidade, acaba fazendo exatamente a mesma coisa, buscando regras e leis no mundo natural, na realidade objetiva.

Não estamos sugerindo aqui adotar um novo nome e queimar todos os livros da Susan Miller. Muito pelo contrário, qualquer estudo que vá no sentido de correlacionar os princípios da vida com os astros é um primeiro passo absolutamente necessário – mas é preciso manter em mente que é exatamente isso, apenas um primeiro passo em uma jornada de mil milhas. A astrologia de rótulos e regras é só a primeira série da escola da astrologia.
Podemos ligar essa astrologia ao signo gestacional (pré-nascimento – Áries) de Aquário, onde a realidade é desconstruída e fragmentada para poder ser entendida. É, de certa forma, um estudo das ‘sincronias do Sistema Solar’, que tenta se remover de um sistema de maneira a entender o funcionamento desse sistema (por isso que Aquário é o signo que segue o estruturador Capricórnio).
Ora, o zodíaco é um círculo, e Aquário é apenas 1/12 da experiência da totalidade. Em Aquário, ainda não chegamos à experiência subjetiva, consciente de um signo de fogo (tudo bem, Sagitário vem antes de Aquário, mas o fogo de Sagitário está próximo demais da transcendência para se falar de individualidade verdadeira). Para equilibrar um excesso de Aquário, é preciso de uma boa dose de Leão – da ‘sincronicidade subjetiva’.
Por mais que tentemos nos remover da realidade, nosso entendimento da realidade está irrevogavelmente ligado a nossa experiência subjetiva da realidade. Hoje em dia sobretudo, vemos uma atitude de que o único entendimento válido é um entendimento ‘objetivo’ da realidade (ou seja, filosofia e ciência), e que é apenas através da remoção da subjetividade que poderemos chegar à v/Verdade, mas precisamos relembrar que a subjetividade é inevitável.
Em vez de falar de astrologia, então, vamos falar de sincronicidade. Ontem (re-)assisti o filme The Nines, do diretor John August, lançado em 2007. É um filme relativamente obscuro, que não saiu do circuito dos festivais, mas é facilmente um dos meus preferidos. Intencionalmente ou não, o filme tem uma conotação altamente gnóstica – grosseiramente, é a ideia de que somos seres divinos presos numa realidade material. Nesse sentido, nossas vidas são prisões, e o filme nos mostra que a forma de escapar da prisão é através da experiência subjetiva, de ver o Universo conversando com você.

A primeira das três partes do filme conta a história de um ator, interpretado por Ryan Reynolds, que está sob prisão domiciliar, e começa a ter experiências estranhas, vendo outras versões de si mesmo e notando o número 9 aparecendo repetidas vezes em sua vida, mais do que deveria. A partir daí, o protagonista começa a questionar sua realidade e sua verdadeira natureza. Não queremos estragar a premissa do filme, então diremos apenas que nas outras duas partes ele começa a entender o que está acontecendo.
O importante aqui é que apenas através da busca por uma explicação para suas experiências subjetivas que o protagonista consegue chegar à Verdade. Ele não pode provar para ninguém que o número 9 surge constantemente em sua vida, que não foi ele que escreveu que tem a nota escrita em sua letra, etc. É apenas através de uma imersão nesses acontecimento síncronos, ou ‘coincidentes’, de sua vida que ele consegue entender o que está falando. Tornando aos astros como referência, 9 é o número de Sagitário, signo da transcendência da busca da Verdade.
Mas o que é mais impressionante é como o filme, por sua própria natureza, parece atrair sincronicidades – aqui, Chris Knowles conta (em inglês) sua experiência com o filme. O dia antes de assistir o filme, 4 de agosto, foi o aniversário do diretor, John August – há nome mais leonino que esse? É difícil separar onde o diretor termina e o filme começa: a casa onde o filme foi filmado é a própria casa de August; a segunda parte é baseada nas experiências do diretor com executivos de Hollywood; nessa mesma parte, a voz do cameraman, que não aparece, é a dele; etc.
John August também foi um dos escritores de Titan A.E., uma de minhas animações preferidas. O contexto é completamente diferente, é claro, mas a mensagem acaba sendo muito semelhantes. Nesse filme, a Terra é destruída por alienígenas chamados Drej, mas não antes de milhares de pessoas evacuarem em espaçonaves e acabam se espalhando pela galáxia. O protagonista, Cale, interpretado por Matt Damon (Daemon?), é um desses sobreviventes refugiados. Certamente não o único, mas seu pai ficou para trás para garantir o lançamento da nave Titan, que continha uma engenhoca capaz de adaptar um novo planeta para a humanidade. Como ele não poderia arriscar que os Drej soubessem a localização da Titan, ele implantou as coordenadas na palma da mão de seu filho.
Ao longo do filme, Cale adquire vários aliados, incluindo o capitão Korso e a piloto Akima (interpretada por Drew Barrymore, que nos liga de volta a Ryan Reynold e a Júpiter/Sagitário de forma fascinante), enquanto luta contra os Drej para chegar à Titan e criar um novo lar para os seres humanos. No clímax do filme, Cale é traído por Korso, que queria encontrar a nave para vendê-la aos Drej, mas é claro tudo dá certo e Cale acaba usando a Titan para terraformar um planeta, que batiza de Bob.
Nos exemplos de nossa interpretação de Capricórnio, associamos o signo ao tradicional papel do vilão da história, então a princípio parece estranho ligar os Drej a Câncer. No entanto, os Drej são seres que operam em um nível completamente diferente do nosso, tornando impossível algum entendimento lógico de suas motivações. O verdadeiro vilão é aquele que existe próximo a nós, e que se interessa apenas na manutenção do status quo, da realidade como ela é nesse momento – no caso, o capitão.
Ligamos os Drej a Câncer, pois é nesta etapa do desenvolvimento psicológico que vivemos o ‘drama familiar’ edipiano, cujo resultado natural é a ‘morte’ dos pais, ou seja, da percepção de que nossos pais são seres humanos, distintos das imagens de pai e mãe que temos em nosso próprio psiquismo. O filme começa justamente com a morte, e não apenas a do pai como também a da ‘mãe’ Terra. Câncer representa nosso primeiro contato consciente com a perda, a subtração – o elemento Água (Peixes também é água, mas precede a tomada de consciência de Áries). É exatamente quando perdemos algo ou alguém que sentimos todo o peso do aspecto subjetivo da realidade.
Em Câncer, cortamos o laço com a família, o cordão umbilical (repare que o ideal é não cortar o cordão umbilical imediatamente após o nascimento). A figura paterna deixa de ser projetada sobre o pai e passa a ser internalizada. Aqui nos tornamos responsáveis por nossas escolhas, e aceitamos a profecia que foi feita em nosso nome. No entanto, essa é apenas o começo da jornada do herói.
Após Câncer vem Leão, e não podemos deixar de constatar que Leão, sendo o oposto diamétrico de Aquário, é justamente aquele que terá a visão mais objetiva acerca do aguadeiro. Cale entende que ele é o único que tem aquela habilidade específica de encontrar os meios para se construir uma nova realidade. Sempre haverá um 10-predador que lutará para que nada mude, então é preciso ter 5-coragem para enfrentá-lo e tornar-se um indivíduo.
Cale entende que o caminho ao divino, representado aqui como o novo planeta Bob, está na palma de sua mão. É apenas ao integrar sua própria existência à matriz do Universo que ele poderá resgatar a humanidade da condição de exilados e refugiados. Da mesma forma, o caminho de nossa própria transcendência necessariamente passa por essa integração da experiência subjetiva aos acontecimentos objetivos – não são coisas separadas e distintas, e sim profundamente entrelaçadas.
Mas então se o vilão de verdade é Korso e não os Drej, o que fazer deles? Para tanto, recrutamos a ajuda do médico e psicólogo alemão Georg Groddeck. Assim como o cálculo foi descoberto por Newton e Leibniz ao mesmo tempo, o inconsciente foi concebido concomitantemente por Groddeck e Freud. Ou seja, ambos chegaram a conclusões semelhantes antes de entrarem em contato um com o outro. Groddeck permanece uma figura obscura pois nunca se preocupou com projetar sua imagem no mundo, e se dedicava quase exclusivamente a seus pacientes.
Groddeck percebeu, em sua prática médica, que pareciam haver ligações entre os sintomas, tanto físicos quanto psicológicos, apresentados por pacientes e suas histórias particulares, suas relações com suas famílias, etc. Era como se o corpo estivesse enviando uma mensagem ao consciente para analisar e questionar um devido aspecto de sua existência: "Aquele que chega à conclusão que mentalmente medico um ser humano que quebrou sua perna tem bastante razão – mas ajusto a fratura e cuido da ferida. E então – lhe dou uma massagem, faço exercícios com ele, dou um banho em sua perna com água a 45 graus por meia hora, e tomo cuidado para que ele não coma nem beba excessivamente, e de vez em quando o pergunto: por que você quebrou sua perna, você mesmo?"
Ora, é claro que o paciente não quebrou a perna conscientemente, propositalmente. A conclusão a que Groddeck chegou é que há alguma agência, alguma força maior que o ego consciente, cuja vontade parece ser distinta mas profundamente interconectada a esse ego consciente. A essa força deu o nome de Isso, e foram as correspondências sobre essa dinâmica que levaram Freud a conceber o id.
Usando o exemplo do paciente que quebrou a perna, podemos nos perguntar: qual seria o ganho ligado a uma perna quebrada? Por que o Isso do paciente o levou a essa fratura, por que o paciente não percebeu a casca de banana no meio de seu caminho? Talvez ele estivesse vivendo uma vida extrovertida demais, se ocupando constantemente com trabalho e com amigos, às custas de uma auto-reflexão, de uma introspecção: será que eu realmente quero estar fazendo esse trabalho, será que meus amigos gostam de mim mesmo? Com uma perna quebrada, ele estará forçado a refletir, pois passará o dia inteiro parado. É nosso inconsciente agindo, frequentemente através de alguma perda (de mobilidade, de disposição, etc.), para nos reequilibrar.
Na metáfora do filme, portanto, os Drej seriam o Isso de Cale agindo para o fazer olhar para si mesmo e ver que aspectos precisam ser balanceados. Sem a destruição da Terra, a perda da ligação com os pais, Cale não partiria na jornada do herói, afim de encontrar sua própria essência. O divino permeceria sempre extrínseco a Cale, e ele nunca olharia para a palma de sua mão.
Nosso objetivo (hah!) aqui foi de mostrar, de uma forma um pouco mais prática que teórica, como a subjetividade, os acontecimentos da vida de cada e como eles nos fazem sentir, é tão importante para um entendimento completo do zodíaco e da astrologia quanto uma análise teórica e ‘objetiva’. Se conversar com o Universo, perceberá rapidamente que ele também está conversando com você, o tempo todo. Ele é parte de você, e você é parte dele. Concluímos com mais uma citação de Groddeck: “Discípulos gostam que seu mestre fique no lugar, ao passo que eu chamaria de tolo quem quisesse que eu dissesse a mesma coisa amanhã que disse ontem. Se realmente queres ser meu seguidor, olhe para a vida você mesmo diga ao mundo honestamente o que vês.”
Bruno dos Santos Costa, Astrólogo
Fonte: https://erisastrologia.wordpress.com/2015/08/06/o-mapa-na-palma-da-mao/
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