O que a psicologia tem a ver com empoderamento feminino?
- Érica Nunes
- Sep 29, 2016
- 4 min read
O trabalho profissional do psicólogo deve ser definido em
função das circunstâncias concretas da população a que deve
atender. […] Propõe-se como horizonte do seu quefazer a
conscientização, isto é, ele deve ajudar as pessoas a superarem
sua identidade alienada, pessoal e social, ao transformar as
condições opressivas do seu contexto. (Ignácio Martin Baró)
A psicologia tem um papel social muito importante, nossa função é de forma integrada com as outras áreas da saúde buscar atingir o mais alto nível de saúde para o indivíduo, lembrando que nossos clientes são sujeitos sociais. Elas e eles estão inseridos dentro de uma cultura, de grupos sociais e de uma situação política específica dentre outros fatores e essas questões dentro da vida cotidiana das pessoas também são vetores de sofrimento e adoecimento mental. Portanto o nosso trabalho vai muito além da intervenção focal com o sujeito, a busca de conscientização, emancipação social e uma situação mais justa e igualitária também é nossa função – ela age como um preventivo ao adoecimento psíquico.
A psicologia como profissão tem um lugar e uma função social extremamente únicos, temos um acesso privilegiado às vivências afetivas das pessoas. A clínica é o lugar do segredo e o seu formato atual tem uma série de falhas e ao mesmo tempo nos possibilita ter tempo suficiente com as pessoas para captar suas construções afetivas mais profundas. Da mesma forma acontece nos outros campos onde a psicologia atua como em hospitais, escolas, penitenciarias, abrigos e etc.

A nossa formação mesmo quando estamos fora do ambiente de trabalho nos outorga um "suposto" saber sobre a vida e os afetos alheios, algo muito tentador e que deve ser evitado. Quando estamos no trabalho com as pessoas devemos estar em constante revisão de nossas crenças, já que as nossas palavras dentro de um contexto terapêutico podem ter estatuto de verdade mesmo contra a nossa vontade.
Como diria o tio do Homem Aranha: “grandes poderes geram grandes responsabilidades”, é claro que o fato de termos um amplo acesso à intimidade dos nossos clientes nos traz uma enorme responsabilidade. É muito fácil e inclusive esperado por muitas pessoas que nos sejamos agentes de normatização psíquica. Exemplo: a jovem está sofrendo por que não se identifica com o seu corpo de mulher, os pais a colocam na terapia para que ela “resolva esse problema”, isto é, querem que a psicóloga(o) volte essa pessoa para a norma. E isso acontece o tempo todo.
Ou seja, uma psicologia feita sem reflexão crítica é um poderosíssimo instrumento de “reconversão” à norma, inclusive o passado de nossa profissão é sombrio em muitos aspectos já que nos primórdios de sua criação e em alguns contextos até hoje a psicologia era usada para fins de tortura e extração de informações.
Levar as pessoas a um maior estado de aceitação de si mesma, gerar de autonomia para lidar com a própria vida e empoderamento afetivo, social e psíquico são as nossas reais funções. Esse processo de emancipação é de enorme importância para o empoderamento de vários grupos, por exemplo os LGBTTI, mulheres, negros, indígenas e pessoas fora dos padrões estéticos e sociais, nesse texto vou me focar nessa intervenção como meio de empoderamento feminino, ressaltando que muitas mulheres são negras, lésbicas ou trans e elas devem ser conscientizadas de todas essas questões sem minimizar a importância de nenhuma delas.
No trabalho com as mulheres - inclusive por sermos uma profissão prioritariamente feminina - somos uma grande arma subversiva, já que a colonização das mulheres é feita em grande medida em âmbito afetivo, ou seja, alguns mecanismos e formas de sentir são introjetados nas mulheres pela sociedade patriarcal.
Primeiro, podemos pensar sobre a importância da educação dos afetos para a psicologia. Quando você mostra para uma mulher – por meio de conversas no atendimento clínico ou mesmo de materiais de leitura e vídeos - que seu problema de dependência emocional é um problema social entre as mulheres imposto em especial por meio do reforçamento da ideologia de realização da mulher por meio de amor romântico. Neste momento ela sai do isolamento e passa a ter clareza dos mecanismos sociais que a levaram a achar que sua vida não tinha sentido sem um homem, por exemplo. Já tive a maravilhosa oportunidade de observar algumas mulheres passando por esse processo que é profundamente libertador para elas e para mim. E isso pode ser aplicado a qualquer um dos sofrimentos psíquicos das mulheres que tem um fundo na opressão de gênero como a dificuldade em ficar sozinha e o processo de culpa vivido na maternidade, por exemplo.
Além disso, percebemos que o processo de emancipação social e afetiva das mulheres gera mudança cultural já que elas param de repetir o processo de opressão do qual eram vítimas de forma invisibilizada nas outras mulheres da sua vida gerando dessa forma uma cadeia de empoderamento - com a nova percepção que muitas mulheres estão tendo a partir dos últimos acontecimentos no nosso país vamos passar a receber muitas mulheres querendo fazer uma revisão de seus afetos e crenças sobre si mesmas, já que perceberam que muitas dessas crenças foram introjetadas e que são totalmente desfavoráveis para elas e adoecedoras. E por último, com o ressurgimento do feminismo para a grande massa

O que muitas vezes é perceptível na clínica é que muitas mulheres chegam com um alto nível de desconstrução intelectual do patriarcado só que no nível afetivo continuam repetindo dinâmicas que lhe são nocivas e isso é totalmente compreensível já que não existe uma cartilha de desconstrução dos afetos opressores, ou seja, vamos ter que buscar caso a caso de que forma podemos intervir positivamente no processo de emancipação desta mulheres.
Precisamos estar preparadas para nesse momento termos uma atitude que vai além do técnico e entra no âmbito político lutando contra a manutenção do status quo e buscando condições de vida que favoreçam a saúde integral de todas as mulheres.
Érica Nunes, psicóloga clínica e blogueira feminista
erica.nunescs@gmail.com
Comments